A moça que escreve como quem filma

O que acontece quando alguém com olhar de cinéfilo lança a visão sobre os dramas do cotidiano e decide escrever sobre eles? Há muitas respostas possíveis, mas me interessa falar de Aleksandra Pereira, que desponta como uma contista que tanto sabe projetar com nitidez as histórias e personagens que cria, quanto surpreender com tramas que partem de situações e pessoas comuns justamente para daí revelar a originalidade de cada instante da vida, por mais trivial que esta possa parecer a um primeiro olhar.

Não há personagens secundários nos contos de Aleksandra. Até aquele que passa, diz uma frase e vai embora, mesmo esse emerge com alma, histórias e carisma, alguém que nos chama atenção e o interesse e sobre quem também haveria muito o que se contar, como a Inara, a vendedora de doces de “Do fim até o começo”.

Hábil no trato com as imagens, a autora necessita de pouquíssimas referências para delinear a personalidade daquelas criaturas que cria e que serão lançadas em conflitos inesperados e nunca inverossímeis. Cada frase vem como se fosse mais um detalhe essencial aprofundando a narrativa que se foca, os atores da trama, suas vidas, passado, desejos, personalidade, seus conflitos cotidianos. É assim que essa escritora extrai o inusitado daquilo que é notoriamente comum, como se vê em personagens como Otacílio (“Andar com fé eu vou”), que quanto mais busca proteção em amuletos e outras defesas esotéricas, mais parece atrair aquilo que teme; ou então a desventurada e solitária Marta (“Alguém sabe da Marta?”), avessa a qualquer tipo de organização doméstica, que acaba ironicamente vítima de sua própria bagunça, depois de uma plausível sequência de pequenos e tragicômicos acontecimentos. E que não se imagine que Aleksandra seja impiedosa com os seres que cria. Ao contrário, ela mais parece seguir a lição pirandelliana da relação do autor com seus personagens, seguindo-os amorosa e respeitosamente naquilo que “eles lhe propõem”, à medida em que a lógica daquelas criaturas vai ficando mais clara ao longo da ação delas nas tramas.

Nos contos dessa autora, tudo está sempre em nítido processo de mutação; as tramas parecem flagrar os personagens exatamente nesses instantes em que suas vidas mudarão significativamente, seja por força de um bilhete premiado, como acontece com Dora em “O bilhete”, ou um simples telefonema que traz à tona um amor sufocado pelo dia-a-dia em “Encontros e desencontros”. Por isso, é até possível que, mais do que o cotidiano, seja a implacável mutabilidade da existência o foco maior da obra de Aleksandra. E aqui me refiro ao modo como a vida se move e – ainda que não nos demos conta disso – pressiona tudo e todos de modo a fazer com que cada dia seja, no mínimo, extraordinário, dentro de seu contexto particular.

Aleksandra tem olhos de cinéfila e, ouso também dizer, de uma cineasta que faz filmes escrevendo. Ler seus contos evoca, de certo modo, a experiência de assistir um filme, pois aqui é impossível não ter a sensação de ver saltar com clareza na tela da nossa mente pequenos fragmentos de existência, cenas que nos convocam a imergir na vida de outrem, de partilhar sentimentos, alegrias e desconfortos. E daí, ao final da história, se deixar quedar em desnorteio ou simplesmente perceber que crescemos mais um pouco naquilo que habita em nós e que alguns gostam de chamar de espírito.


Luiz Felipe Botelho
Salvador, 10 de janeiro de 2007


Lipe, um abraço bem grande e apertado,
e um Kit Palavras com tudo de bom dentro.

Caríssimos,

optei por não abrir comentários aqui ao menos por enquanto.
Estou testando essa edição digital para que ele chegue as editoras com alguma história, sem esperar mais para acontecer.

Mas deixei aqui o link prontinho para o e-mail, querendo escrever, é só mandar! Serve até para mudar e diferenciar do espaço do blog, e ver o "Do fim..." ainda mais como um pré-livro. Espero que entendam e, mais uma vez, obrigada pela força e carinho.


EM BOAS MÃOS

Armando, Gonçalves e Peixoto sempre foram conhecidos como o Trio Sensação. Amigos desde garotos, cresceram juntos no bairro da Aparecida, estudaram na mesma turma, namoraram amigas. Juntos bateram na porta do Seu Agenor, o dono da Fábrica de sorvetes, e por anos trabalharam lado a lado.

Mesmo com relacionamento mais estável do que muitos casamentos, brigavam muito, pois eram de temperamentos diversos: Armando era mulherengo, falastrão e convencido. Gonçalves era o medroso e mentiroso. Peixoto, Peixoto era um cara comum, feliz com a vida que levava, com os amigos. Eles eram sua grande conquista na vida, e se orgulhava ao lembrar que foram suas bolinhas de gude que os uniram. E Peixoto era mesmo a cola que ligava os três amigos.

E juntos viveram por muitos anos. Atravessaram décadas, planos, presidentes, copas e Olimpíadas. Casaram, nasceram os filhos, netos. Perderam dentes, cabelos, esposas, filhos. Mas sempre se tiveram por perto, para tudo.


Desde a aposentadoria se encontravam na Praça Quinze a jogar 21 e conversa fora, esticar o olho para as ancas das babás. Todos os dias, religiosamente, até aquele em que o Peixoto não apareceu.

Armando e Gonçalves guardam a soleira da porta da pensão onde moram, aflitos. Percorrem hospitais e delegacias, quando Peixoto reaparece, tranqüilo, enigmático, sorriso de orelha a orelha como se nada tivesse acontecido.

Os amigos desconfiam; Peixoto, desconversa.

Escapando, às vezes Peixoto sumia por poucas horas quase todos os dias. Antes de terminar o mês, ficava sem sua aposentadoria, logo ele, que sempre fora tão econômico.

Armando e Gonçalves estudaram as possibilidades: vício, jogo ou mulher. Drogas eles descartaram. Jogar ele jogava sim, até apostava – de forma comedida, é claro. Tinha que ser mulher.

E era.

Rose, loirona Wellaton queimada de sol, pernas roliças e firmes, unhas bem feitas. Uniforme branco justinho, sensual, atendente em casa de massagem - para a mãe, era enfermeira.

Derrubou o queixo de Armando e Gonçalves. Por inveja, por despeito. Não, não. Por preocupação. Uma mulher daquelas só poderia querer espoliar o pobre Peixoto, logo ele, que emprestava para quem precisasse, sempre solícito, sempre amigo. Pobre Peixoto.

Tentaram lhe abrir os olhos. “Deixem disso”, ele respondia com um muxoxo que escondia o orgulho. Rose era dele, o que nem os amigos nem ninguém entenderia. Dele, José Álvaro Peixoto, 69 anos, aposentado de uma fábrica de sorvetes. Dele.

Que os amigos não se preocupassem, Rose era moça direita. Todo dia ela só lhe pedia um dinheiro para uma coisa boba, uma fezinha no bicho (Sonhava sempre com uma enorme borboleta, tinha certeza que daria). Prometeu que, assim que ganhasse o prêmio, largaria a vida na casa de massagem para viver com Peixoto, como mulher dele, senhora de seu castelo, casa amarela, dois cachorros, um pequeno salão de cabeleireiro e um altar para São Jorge.


Mais de 60 anos de amizade, que sobrevivia a quase tudo. Peixoto desejara novamente provar do fruto proibido, e a serpente se achegou entre eles em forma de mulher. E que mulher!

Não acreditando, Armando e Gonçalves resolveram pagar para ver, e pagaram mesmo: cercaram Rose de mimos, presentes, pequenos agrados em dinheiro. Rose a tudo recebe, timidamente agradecida, mas não conquistada. Reafirma sue amor por Peixoto, e a real vontade de viver com ele.

Eles insistem. Peixoto vai se mostrando cada vez mais calado e desconfiado em casa, com os amigos. Acreditam que tudo vai bem com o plano. Intimamente, tanto Armando quanto Gonçalves se sentiam merecedores de uma noite ao lado daquela Pâmela Anderson do subúrbio. Logo, logo, Peixoto cairia em si e descobriria a besteira que queria fazer.

Rose, enfim, do nada, desapareceu. Largara o emprego na casa de massagem, não retocava mais as raízes no salão da Rua Setúbal, não descia mais a Duarte Amaral requebrando e torcendo pescoços. Sumira. Gonçalves reparara no resultado do bicho: borboleta.

Armando e Gonçalves esperam Peixoto comentar o fato, chorar e espernear nos ombros amigos, esbravejando que mulheres são todas iguais, que só mudam de endereço e não deixam o nome da rua. Nada. Com o tempo, Peixoto voltara aos jogos de 21 na praça, ao flerte com as babás – principalmente as loiras de farmácia.

Só a amizade que já não parecia bem a mesma. Peixoto já não ria mais das piadas sem graça de Armando, e nem repetia o prato de macarrão insosso que Gonçalves preparava. Olhava às vezes para o nada, pensativo, distante, à procura. Estava já perdido para eles.


Até que Peixoto se perdeu de vez.

Armando e Gonçalves nunca mais tiveram notícias dele. Imaginavam o amigo entregue à própria sorte, vagando pelas ruas, chorando seu amor malogrado. E ninguém nem nenhuma babá mexeriam tanto com eles quanto a bela massagista. Uma pena.

Rose foi vista em uma casinha amarela em uma cidadezinha lá longe, cuidada por dois cachorros que ficavam presos enquanto seu salão funcionava. No meio fio, brincavam suas duas crianças, Dorival, o filho de Peixoto, e o próprio, exibindo sua coleção de bolinhas de gude. Estava no Paraíso.


Sentia-se mais moço, capaz de qualquer coisa ou tudo de novo. Dali duas semanas Peixoto faria algo ainda inédito em sua vida: uma tatuagem. Borboleta. A primeira.

AI, ADELAIDE!

- Adelaide, passa a pipoca. A pipoca, Adelaide!
- Psiu! Quieta!
- Mas eu tô com fome!
- Dá logo essa pipoca prá menina, Adelaide.
- Peraí. Ai, como ele é lindo...

Adelaide, nossa heroína, é uma jovem decidida, curiosa e romântica. Do alto de seus incompletos 16 anos, seu maior sonho é sair de sua cidadezinha e viver uma vida de estrela de cinema, ao lado, é claro, de um ator incrivelmente famoso - um desejo nada incomum na cabecinha fértil de uma jovem sonhadora.

Seu refúgio são as salas do Cine Marechal. Nelas, seu pensamento voa e ela se imagina vivendo todas as aventuras, curtindo todos os momentos românticos e de grande paixão, atuando com astros e estrelas tão conhecidos e familiares, num mundo onde todos falam inglês, of course, inclusive ela. Sua admiração pelo mundo do cinema é tão grande, que muitas vezes Adelaide confunde realidade e fantasia.

Suas melhores amigas são Neide e Cidinha, que dividem com Adelaide o gosto pela sétima arte, mas muito mais realistas e interessadas nos moçoilos da cidade mesmo.

- Ai, que tédio!
- Adelaide, pára de reclamar da vida, mulher.
- É, Adelaide. A vida aqui é tão boa, tranqüila...
- Esse é o problema: não acontece nada nessa porcaria de cidade! Ai, como eu queria que um grande astro viesse me buscar aqui, me tirar desse buraco de fim de mundo!
- Adelaide, Alegria não é uma cidade tão ruim assim de se viver.
- Alegria? Essa cidade é uma tristeza de dar dó!
- Ai, Adelaide!

Além disso, Cidinha e Neide partilham entre elas o gosto pela mais marcante paixão nacional: a televisão. Acesso às novelas, notícias, programas humorísticos, logo ali, na sala de suas casas, sem se preocupar em que roupa vestir para agradar os brotinhos. Só mesmo Adelaide ainda não se interessara pela “caixa mágica”, sempre pensando em seu grande amor da semana, ou da última sessão de cinema.

Adelaide é uma moça bonita mas de temperamento forte, como Catarina, de “A Megera Domada”. Ela quer escolher seu amor, não ser escolhida. Alguns já tentaram, mas ela não cede. Sua persistência em seu desejo é tão intensa, que Adelaide humilha o pobre do aprendiz de padeiro Pereirinha, filho do senhor Pereira. O triste rapaz a segue por todos os lugares, suplicando um olhar, um gesto, uma palavrinha, e nada. Ao seu lado, Adelaide imagina uma vida inteira atrás do balcão, com seus filhos se tornando padeiros, seus netos...

Adelaide preocupa a mãe, Dona Nair. A filha vive suspirando pelos cantos. Toda semana, um nome de homem diferente: Guilhermo Alejandro, Felipe Anselmo, Mateus Ventura, Lourenço Aguiar... e sempre apaixonada por todos. Mal come. Diz que se alimenta com o seu amor...

- Menina, amor só enche barriga quando a moça engravida. O que você andou aprontando, Adelaide?
- Ai, Dona Nair!

Sua mãe faz o que pode para conter as loucuras da filha. Vive de joelho dobrado em frente ao seu altar para Santa Rita de Cássia, com seu terço na mão, pedindo paz e juízo para a filha desvairada:

- Ai, minha Santa Rita de Cássia, ajude a Adelaide! Faça com que ela crie juízo, que esqueça de uma vez por todas essa história de cinema e arrume logo um bom namorado para fazer um bom casamento. Tô vendo que ela vai ficar é solteirona e pra titia, que Silene tá é cuidando da vida dela.

Adelaide, em seu quarto, também reza para sua Santa Rita, mas não aquela mesma de sua mãe:

- Ai, minha Santa Rita, minha Santa Ritinha. Minha Santa Rita Hayworth, faça com que meu príncipe encantado de Hollywood venha logo me buscar, para o meu casamento dos sonhos. Não quero ficar solteirona! Ah, e me faça ficar poderosa como a senhora em “Gilda”, por favor. Amém.

Adelaide possui excepcional talento para copiar os figurinos de suas musas inspiradoras. Vira noites debruçada sobre a máquina, cosendo, procurando o que fazer naquele lugar, o que acaba lhe dando uma boa idéia: já que possui energia e tempo de sobra, além de ser boa em copiar vestidos, por que não costurar para fora? Como diria sua mãe, “distrai a cachola de besteira, e também vai te dar um dinheirinho”.

E assim Adelaide seguiu levando sua vidinha. Foi com orgulho que viu seu trabalho ser requisitado por todas as senhoras de Alegria, tornando seu mínimo espaço de produção no “Ateliê Adelaide – costuras de classe”. Costurava dia e noite e ainda com três ajudantes, sozinha não dava mais conta. Mal via Neide e Cidinha, que namoraram, desmancharam, namoraram, até casarem, deixando a cidade muito antes de Adelaide, que já se aproximava dos 30. Neide se tornou professora na capital e vizinha de Cidinha, que perseguiu seu sonho e se tornou garota-propaganda na televisão. Vendia de tudo, mas o que mais gostava era de anunciar produtos alimentícios.

A mais nova e, por incrível que pareça, duradoura paixão de Adelaide era Leandro Villar, astro do cinema paulista, protagonista de fitas badaladas como “Sem fronteiras para amar” ou “Colinas da Paixão”, um tipão. Sua mais recente produção, “Amor do interior” procurava um local ainda bucólico para as filmagens, e anunciaram justamente gravar em Alegria alguns trechos. Como Adelaide amava sua cidade!

A praça principal estava escura de tanta gente, fios e equipamentos. Adelaide tenta daqui, se estica dali, e consegue ver o que acredita ser o pescoço de Leandro Villar, o mais perto que já chegara de um astro de cinema. Esperará atentamente que acabem para correr e lhe falar qualquer coisa, se não estiver emocionada para tanto.

Mas aquele dia passava devagar. Horas e horas onde cenas se estendiam, sem Adelaide entender. Quantas vezes repetiriam o mesmo trecho, arrastando a câmera, e de novo, e mais uma vez? Nunca havia imaginado que ver uma produção assim, de perto, seria tão... tão... tão chato. Cansou. Precisava ir ao banheiro.

Adelaide sai correndo por entre a multidão quando tropeça em um dos muitos fios, ou pés, não recorda. Só sabe que tropeçou, caiu e bateu a cabeça, o que comprova a fina cicatriz que ficou depois. Acordou com o céu escuro sobre si, de pessoas amontoadas, curiosas. Entre elas, segurando sua mão, Leandro Villar. Só podia estar vendo coisas.


- Me deixem passar, é minha filhinha, Adelaide! - gritava Dona Nair.
- Eu estou bem, estou até vendo estrelas – respondeu uma atordoada Adelaide.
- Calma, minha pequena. Você sofreu um pequeno acidente, mas está bem. Eu a levarei para casa, daremos uma pausa – disse Leandro Villar, voz suave, com todo o charme que ela via na sala escura do cinema.
- Isso, mãe, ele me levará daqui, eu falei...
- Moço, vamos logo, ela tá delirando!
- Se eu estiver delirando, por favor, não me acordem!

Adelaide voltou para casa nos braços de Leandro Villar, super astro, seu astro, o grande amor de uma vida. No caminho já se imagina entrando na mansão deles, recém-casados, os três filhos lindos e bem cuidados, as festas que iriam, a vida que levaria...

Leandro Villar limpa com cuidado o machucado em sua testa, ali, tão perto dela.... Aqueles olhos! Sempre lhe denotavam algo familiar, mas assim, tão próximo, a suspeita crescia, urgia, gritava:

- Perei... Pereirinha?
- Eu.
- Você é Leandro Villar?
- Leandro Villar sou eu, sim.
- Mas por quê?
- A garota por quem eu fui apaixonado era louca por astros de cinema. Um dia, um amigo de um amigo precisava de um figurante para uma produção, eu me ofereci, fui muito bem, e aqui estou.
- Por que Leandro Villar?
- Antonio Afonso dos Ramos Pereira não é nome de ator famoso, não acha?

Leandro Villar, Pereirinha, pega as mãos de Adelaide.

ADELAIDE
E a garota?

PEREIRINHA
(irônico) O que tem ela?

ADELAIDE
(num muxoxo) Não é mais apaixonado por ela?

PEREIRINHA
Não.

ADELAIDE
Ah, que pena.

Adelaide vira o rosto para esconder as lágrimas. Pereirinha pega seu queixo e a faz olhar para ele.

PEREIRINHA
Hoje ela é uma linda mulher, e eu a amo.

ADELAIDE
Oh, Pereirinha!

Pereirinha e Adelaide beijam-se apaixonadamente.

PEREIRINHA
Ai, Adelaide!

CORTA PARA:

INTERIOR – IGREJA - DIA
Adelaide e Pereirinha no altar, igreja cheia, com Cidinha e Neide como Madrinhas e Dona Nair chorando copiosamente.

ADELAIDE (falando para a câmera)
Eu não disse que ainda me casaria com um astro de cinema?

NEIDE E CIDINHA (suspirando)
Ai, Adelaide!

FIM
FADE OUT

DIRETOR (OFF)
Corta! A cena ficou ótima, podemos ir para casa, pessoal!

CRÉDITOS FINAIS

O MEU DESTINO É SER STAR

Altair era ladrão. Não dos largamente reconhecidos em noticiários de plantão, nem desses que volta e meia estampam as colunas policiais – era sempre o que ficava para trás nas fugas, o mais devagar, o das costas mais frias.

Ele bem que tentava levar uma vida digna, mas sua preguiça em levantar cedo o fazia inventar as mais variadas desculpas aos empregadores, que as aceitavam até o limite aceitável. Sonhava em ficar rico e famoso, mas a única pessoa que assumidamente o conhecia era dona Idalina, sua mãe - e mãe a gente não conta.

Mas Altair precisava de dinheiro para montar o barraco dos sonhos de sua mulher, Sandra Rosa Madalena, que ganhara esse nome em homenagem ao homem que crescera acreditando ser seu pai; a mãe não confirma ou nega, mas não abandona o retrato autografado já roto, escondido sob o colchão.

Sem nada para fazer nem dinheiro para gastar, passeando com a esposa, Altair um dia notara o brilho de satisfação nos olhos de Sandra Rosa ao admirar um sofá exposto numa vitrine. Seu olhos brilhavam mais do que fogos pipocando na noite do Morro do Chacrinha. Sabia que sua nega já se via sentada naquele sofá, na sala de casa, recebendo as vizinhas roxas de inveja, enquanto a mãe punha na vitrola um disco do Magal.

A saideira. Altair promete ser esta a última vez em que se meteria em roubada, delirando ao pensar na felicidade de sua mulherzinha.

Sandra Rosa Madalena está em casa, cansada após lavar tantos cabelos em seu pequeno e alugado salão. Liga a diminuta TV, comprada em prestações – “Mas é minha” – e se acomoda no velho sofá ao lado da mãe e da sogra, que cochila. Mas num pulo, aos gritos, Sandra Rosa e as duas mulheres vêem no noticiário local um sonolento e assustado Altair, escoltado por dois policiais:

“A polícia respondeu a um chamado de arrombamento nesta loja de móveis aqui do centro, e encontraram o provável criminoso, Altair José dos Santos, 27 anos, dormindo em cima de um tapete. Dormia tão tranqüilamente que o barulho dos roncos guiou os policiais até os fundos da loja”.

- Seu Altair, por que o senhor invadiu a loja de móveis?, perguntou uma sardenta repórter.
- SANDRA ROSA, MINHA NEGA, EU FIZ BESTEIRA, MAS FOI PRA TU PAIXÃO, EU JURO!, - apelou Altair.
- O senhor agia sozinho?
- Por que foi pego dormindo?
- Como levaria o sofá para casa?
- O senhor se arrependeu?

Altair não responde. Flashes explodem enquanto repórteres aguardam ansiosos, o aviso de “AO VIVO” piscando na lateral da tela, Sandra Rosa sem saber se socorre a sogra ou enfarta.

- Seu Altair, não tem mais nada a dizer?, - aguardavam câmeras, gravadores e microfones.

Altair, pingando suor, ensaia um sorriso amarelo.

- Tenho sim senhora. (...) MÃE, EU TÔ NA GLOBO!!!!

COISAS QUE O CORAÇÃO SABE DE COR

Mais um dia de faxina. Cordélia separa o lixo e nele despeja fotos, cartas, discos, lembranças, e os cacos de seu coração partido.

Apostara suas fichas em um homem antes gentil, amoroso, companheiro. Passou a dormir sozinha, grossas lágrimas esquentando o travesseiro.

Se indagava onde errara, o que dissera, o que não perguntara, questões que sabia de cor. Jurara não mais se envolver, se apaixonar. Outra vez doada, inteira, entregue.

Cordélia se fechou em sua tristeza, em seu mundo sem cor. Seu caminhar, esperançoso e confiante, tornara-se tímido, acanhado, inexpressivo. Procurava não chamar a atenção, mantendo no rosto a máscara mais comum do mundo.

Mas mesmo sem intenção, sem querer, Cordélia chamara a atenção de Luiz Otávio. A apatia da moça lhe inspirava compaixão e vontade de conhecer a mulher que se escondia sob aquela capa de melancolia. E, sem saber o que fazer, lhe sorriu. Um sorriso que incomodou Cordélia.

E Luiz Otávio continuava a sorrir. Na entrada do prédio, lanchonete, supermercado. Na barraca de frutas, posto médico, biblioteca. Cordélia não entendia o motivo dele sempre lhe sorrir. E como ele sorria!

O rapaz a intrigava. Sonhava com suas covinhas, seus profundos olhos negros, seu olhar impaciente, à espera. “Esperando o quê?”, a moça queria saber.

Até Cordélia sentir seu peito doer. Maltratado e sofrido, Cordélia esquecera de seu pobre coração, que ansiava por voltar a pulsar, bater com vontade.

Não, isso não é amor. É hora de largar o cigarro”. E marcou um check-up para tranqüilizar o coração iludido. Pela primeira vez na vida queria uma justificativa em um mal físico, não uma comoção adolescente por causa de um sorriso.

Um sorriso. Já se enganara com tantos outros antes, não poderia ser aquele o certo. No máximo o homem por trás daquele riso delicado a julgara fácil, carente. Como todos os outros.

Os exames lhe viram do avesso. Nada.

Mais saudável do que eu”, brincara um dos médicos.

Seu coração está muito bom”, disse a voz entrando na sala onde ela aguardava. “Coração de menina. Ainda procurando um grande amor na vida?”.

Colérica, indignada, Cordélia quis o pescoço daquele médico que lhe falava assim, pelas costas, de seus próprios sentimentos e...

E antes de dizer alguma coisa, Cordélia se calou.

Não se preocupe. Seu coração está em boas mãos”, disse Luiz Otávio, sorrindo.

Doutor Luiz Otávio. O misterioso dono do sorriso instigante, o estranho a quem Cordélia entregou seu coração, que sabia como ele pulsava, em qual ritmo, e agora por quem ele batia.

Cordélia corou, respirou fundo. Identificou o sentimento: era amor mesmo. O que fazer? Afinal de contas, quem um dia poderia entender mais daquele sofrido coraçãozinho, do que seu próprio cardiologista?

GUERRA & PAZ _ MENTIRAS SINCERAS ME INTERESSAM

- Maurício! Ô Maurício, pára de assobiar e responde logo: pagou ou não a conta da TV a cabo?
- Conta?
- A que te pedi pra acertar anteontem, na volta da academia.
- Ah... Não.
- Então pague amanhã, senão vão cortar.
- Não vai dar não.
- E por que não? Maurício, o que você fez com o dinheiro?
- Nada. Comprei um gibi. Um só.
- E o troco?
- Sem troco. Pô, amore, era uma raridade, edição de aniversário, prá colecionador. Saiu até barato!
- Ai, que eu vou ter um troço!
- Calma, Fabiana, prá quê tanta frescura por causa de...
- Frescura?

AAAAAAAAAHHHHHHHH!
Vai dizer que seu marido nunca aprontou uma dessas?

Cuidar do marido às vezes é como cuidar de um filho, preparando sua comida, correndo atrás para catar as tralhas espalhadas pela casa... Alguém por favor, me explique: prá quê tanto gibi de heróis multicoloridos e mocinhas com colant apertado?

E de nada adianta eu tentar reclamar: o Maurício sempre aumenta o rádio e assobia toda vez que tento pedir alguma coisa, mesmo a mais simples (imagina se fosse para discutir a relação!). Não agüento mais ter de brigar por bobeiras como baixar a tampa do vaso sanitário, tirar a toalha molhada do chão ou não beber direto da garrafa. E ainda tenho que entender que ele, quando quer refletir, precisa fazer isso com a porta da geladeira aberta!

Sinceramente, mulher que se desdobra nessa jornada dupla de lavar, passar, arrumar e ainda ter que engolir sapo de chefe deveria ganhar o Nobel da Paz. Da Paz, não, da Paciência.

Cuidar de casa + marido + emprego não é nada fácil, ainda mais hoje onde a principal exigência para a mulher moderna é a de ser multitarefa: cuidar dos afazeres domésticos, trabalhar fora, bajular a sogra, fazer compras, almoço, jantar, cabeleileiro quando sobra tempo, além de estar sempre fresca e perfumada. A mulher-esposa-amante-empregada 24 horas em ação.

Mas afinal, e para os homens, o que é ser multitarefa? Assistir ao futebol com uma mão segurando a cerveja e a outra minha coxa? Ter que decidir qual deixar livre para pegar o controle remoto e zapear na TV a cobertura dos melhores momentos da partida?

Onde foram parar a cordialidade, a atenção e gentileza dos primeiros tempos de casamento? E o romantismo?Desde quando ficou chato ser romântico?

E olha que eu nem sou uma mulher tão exigente assim, eu só queria um homem que me amasse, mesmo com todos os meus defeitos, todos eles - incluindo o cabelo matinal desgrenhado, o pneuzinho aconchegante na cintura, e a vontade de almoçar pizza de vez em quando - e, se possível, que fosse a cara do Brad Pitt.


Mas o Maurício não se parece com o Brad Pitt. Talvez de longe, no escuro, visto por esta mulher míope e... apaixonada. O Maurício sempre esquece nossas datas importantes, flerta com minhas amigas, espalha copos sujos pela casa... Mas esfrega meus pés quando reclamo frio, encaixa o corpo no meu prá me ninar quando tenho pesadelo (o último foi com uma visita surpresa da mamãe. A dele). E quando diz “eu te amo”? Faz parecer mentira todas as vezes que ouvi essa frase de outros homens. É raro ouvir dele, mas quando acontece, ele sempre me ganha. Me sinto única, desejada, feliz e...

- Fabí...

... caindo das nuvens.

- O que é, Maurício?
- Cê viu minha camiseta cinza, aquela que uso sempre?
- No cesto de roupa suja.
- Poxa, amore, eu tenho jogo hoje com os caras, e você nem lavou?
- Avisei que a vez de lavar roupa era sua.
- Não, eu lavei da última vez.
- Sua “última vez” foi MÊS passado, Maurício.
- Ah, Fabizinha, dá uma lavadinha nela enquanto eu tomo banho...
- Não dá.
- Por favor...
- Não.
- Tá.... tá certo, amorzinho. Não quero interromper sua leitura, você deve estar cansada, trabalhando tanto...
- Trabalho mesmo.
- Vai dar uma voltinha com suas amigas, se distrair.
- Eu vou.
- Você merece. Uma mulher e tanto. E é minha. Dá beijo. Te amo.
- Falso. Não vou cair nessa sua conversa mole não. Vai lá tomar seu banho.


Sem vergonha. Sabe dizer as palavras certas e do jeitinho certo, não posso negar. Cachorro. Não é o Brad Pitt, mas é o homem que eu amo. Fazer o quê?

Só tomara que essa camisa seque logo.

- Ô, Fabizinha, minha paixão, você lavou e secou a camiseta, minha rainha? Minha gostosa, dá beijinho, obrigado!
- Não foi nada, querido...
- E ainda passou... Peraí, ô Fabiana, não acredito! Cê marcou a minha camiseta predileta com o ferro, quase que fez um rombo! Volta aqui! Volta aqui, Fabi! Por que que você tá assobiando? Fabiana, volta aqui, que agora EU quero discutir a relação! Fabiana!

GUERRA & PAZ _ SEM EXPLICAÇÃO

- FABIANA!?
- Oi, amor.
- Tá pronta?
- Só um pouquinho, amor, não achei o sapato que combina com a saia longa vermelha.
- Vermelha? Fabiana, tem meia hora que eu olhei e era azul, Fabi, azul. Um VESTIDO.
- Me deixou gorda.
- Gorda onde, Fabiana?
- Do dedinho do pé aos pensamentos.
- Ai, meu Deus! Fabi, A ópera. Não irão nos esperar para começar. Fabi...
- Não sei. Acho que vou com o vestido mesmo.
- Fabiana!

Quando conheci a Fabiana, tive certeza de que não era mulher pra mim: descolada, bem-humorada, sexy. Nunca me olharia. Mas olhou. Sorriu do meu jeito sem graça, da falta de tato; ouviu trechos dos meus três primeiros romances ainda não publicados, da minha peça nunca encenada, da minha vida pouco vivida. Achei que não tornaria a vê-la, mas na semana seguinte estava lá, no lugar que combinamos. Saia jeans, blusinha, elástico nos cabelos presos. Batom marcante e perfume suave, cheirando a promessas.

Fabiana entrou em minha vida feito um furacão. Mal se instalou em casa foi mudando as coisas ao seu gosto, reorganizando meus CDs, escondendo as pilhas de gibis. Me sentia “a visita”, perdido. Tirou a cama do lugar por causa do “feng-shui”, comprou um grill para diminuir a gordura, transformou o quarto de despejos em sapateira (todos com salto. É mesmo impressionante o que uma mulher pode agüentar só por vaidade!). Um saco.

Tá bom. A casa ficou aconchegante, eu admito. Só não parece a minha.

O sexo é formidável, mas as discussões são homéricas: “abaixe a tampa do vaso”, “tire a toalha molhada da cama”, “não bebe na garrafa”. Só que é o MEU vaso, MINHA cama, MINHA garrafa. Meus.

O único reino somente meu é o do papel com minhas tentativas de contos, roteiros, peças. Vez por outra uma personagem morena, gostosa e mandona tenta se infiltrar nas histórias, mas eu a exorcizo, sua morena gostosa e mandona.

A Fabiana pode ser mandona, briguenta, mas é uma gracinha. Se derrete de chorar com comercial de margarina, não tem medo de barata e sim de borboleta, além de memória de elefante para coisas bobas. Mas tem uma enorme capacidade de prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo, sempre prova a minha comida antes, põe ordem no meu caos.

Ela me escuta, traduzindo minha língua enrolada. E fica linda só com a camiseta do meu time e uma calcinha de algodão. Pena que leve tanto tempo pra se arrumar.

Se bem que esse põe e tira roupa por não ter o que vestir é um dos meus shows eróticos preferidos...

- Mauríciô?... Me ajuda a fechar o vestido? Tô quase pronta. Isso. Não, amor, é pra fechar...
- Vamos ficar por aqui mesmo.
- Poxa. Por eu me atrasar só um pouquinho?
- Não. É que o programinha caseiro ficou muito mais interessante...
- Bobo!

MALES DE AMOR

Já havia virado caso de polícia, mas Ana e Jonas ainda viviam discutindo. Ela queria que ele parasse mais em casa, reparasse nela, brincasse com os filhos, mas Jonas sequer a ouvia. Era Ana começar a se queixar, ele logo explodia, e era a deixa para sair de casa e espairecer, ficando Ana só com as paredes – quando não saía atrás dele e continuava a briga na rua.

Era a final da Libertadores, e o time de Jonas apanhara feio. Arrasado, Jonas chega em casa e se depara com a casa arrumada, filhos na vizinha, esposa cheirosa e gentil. À mesa, uma fartura de delícias, seus pratos prediletos. Jonas bendisse a Deus a mulher que tinha. Comeu de se esbaldar, lambendo os dedos de contentamento, enquanto Ana o servia pacientemente.

Após a sobremesa, satisfeito e ainda bobo, Jonas sente certo incômodo, um mal estar. Suando em bicas, ao olhar para o sereno e impassível rosto de Ana, percebeu que fora vítima de uma engenhosa armadilha. Tenta fingir que nada acontecia, enquanto Ana lhe trazia o café. Não queria ceder, entregar os pontos, enquanto Ana só o observa. Em pânico, já se contorcendo de dor, a única solução que resta a Jonas é se entregar ao inimigo. Perdera a batalha. Corre para o banheiro, onde chora, aliviado.

Ana, do lado de fora, calmamente pega uma cadeira, e senta. Pode ter estragado a flora intestinal do marido, mas não iria estragar seu casamento. Assim, impossibilitado de deixar o posto por um bom tempo, Jonas teve que, pacientemente e sem outra opção, ouvir todas as queixas acumuladas da esposa, enquanto maldizia os efeitos quase instantâneos do potente laxante que habilmente fora induzido a tomar.

Obs.: é fato que, os amigos do casal que freqüentam a casa, ao saberem que eles estão no meio de uma crise, nada comem ou bebem quando os visitam. Vai saber...

CIRANDA DE SÃO JOÃO

A cidade inteira era uma euforia só. Cidadinha pequena, daquelas que cresceram em torno da Praça da Igreja, todo dia o sinal da cruz ao passar pelo cemitério, ao meio-dia, em testa de criança prá passar soluço longo.

O casamento da filha de Nhô João era o assunto à boca pequena ou de qualquer tamanho e saúde. Margarida, um doce de moça e, do jardim do pai, sua flor favorita.

Antônio, o pretendente adequado: melhor nascido, educado na capital, doutor dos bois e cavalos da região, até parto de criança de emergência já teve que fazer. Verdade. Taí a filha de Dona Zenóbia que não me deixa mentir.

Nunca fora moço de tomar liberdades, sempre respeitador. Pedia para pegar na mão, namorava na sala, ia embora cedo. Fazia planos para a nova casa, os quatro filhos, a ampliação do consultório.

Margarida cuidava dos detalhes para o casamento: enxoval, vestido, Igreja. Pagara com fervor sua promessa para seu santinho, o Antônio, que finalmente lhe atendera e lhe mostrava o amor.

Mas o Santo, ocupado que só ele, errara o alvo, coitado. Margarida bem que se esforçou em se apaixonar pelo correto Antônio, mas quando seus olhos encontraram os de Pedro, estava já desarmada de seus lógicos argumentos e princípios, era toda coração. Faltaria com o pai, com o noivo, com toda a pequena cidade que a vira crescer.

Tomou a jovem o rumo da estrada com a roupa do corpo e um sorriso nos olhos, amparada por seu ladrão.

Nhô João organiza grupos de conhecidos, desbandeirados à procura da doidivanas que de desculpa deixou sobre a cama o vestido, branco como seu silêncio.

Antônio caído à porta, inconsolável. Poderia ter desposado Francisca, a outra irmã e ainda bonita, sem graça mas sempre presente. Sentia falta da mão macia e quente de Margarida.

As pessoas aos poucos retornam às suas casas. O que teria feito Margarida abandonar o noivo sozinho no altar, ninguém soube, assim como também ninguém entendeu a súbita chegada de Padre Valdir, substituindo o jovem pároco Pedro.

AMIGO SECRETO

Final de ano, festas. As pessoas ficam mais contentes, abertas, solidárias. Uma efusão de “Bom dia!”, “por favor”, “obrigada”. Nos escritórios, listas com pedidos são montadas e é declarada aberta a temporada do “Amigo Secreto”, ou “Amigo oculto”, como preferir.

Só o nome já incomodava Érica. Não gostava de saber ter algo, alguém, secretamente oculto - parecia um tanto proibido. E se expor em uma lista, sendo obrigada a dizer o que deseja ou o que quer ganhar, chamava demais a atenção para si, coisa que nunca gostava.

Érica nunca sabia o que pedir, era sempre a última a informar seu gosto, para azar dos que a sorteavam. Acabava escolhendo coisas simples, miudezas. Mas na hora de presentear era bem diferente: se o amigo pedisse um CD de um cantor, recebia uma coleção completa. Uma bolsa? Não sem a sandália combinando. A pequena se desdobrava pesquisando a vida de seu amigo especial, seus gostos e preferências.

Reservada e discreta, Érica não guardava amigos, cultivava uma colcha de retalhos: o sorriso de um, o gosto para vinhos de outro, o orgulho de uma mãe por seu filho. Pedaços de outras vidas para formar a companhia ideal. Não que Érica fosse muito exigente. Só queria alguém fiel, carinhoso, que fizesse tudo para lhe agradar e não pedisse muito em troca. Podia ser um amigo, um amor. Ou um cachorro.

Respirou fundo, entregou pra Deus, e resolveu entrar no clima da brincadeira. Não custaria muito se divertir um pouco, para variar. Sorteou Jorge, um dos dois estagiários do departamento financeiro. Alto, magro, falante e canhoto, era tudo o que Érica sabia. Foi olhar o pedido do amigo: em branco.

“Mas que pessoa é essa que demora tanto prá escolher o quer? Que indecisão!”

Passou a avaliar o estagiário: qual tipo de caneta preferia, as músicas que cantarolava, para qual tipo de mulher olhava. Sim, porque através delas poderia adivinhar alguma coisa. Mas Jorge não lhe dava pistas, e ela não conseguia descobrir nada útil.

Érica se aproximou de Merival, o outro estagiário. Não era amigo de Jorge, mas poderia lhe ajudar. Ela não queria dar bandeira e entregar quem era seu amigo oculto, e inventou uma história onde Janete, a secretária da diretoria, estava interessada no rapaz. Envergonhada, Janete pedira a Érica que lhe ajudasse na empreitada.

Merival concordou prontamente em ajudar. Um rapaz falante, pequeno, precocemente careca e, o que Érica descobriu depois, de gosto literário duvidoso: escolhera o livro “Revelando - para quem não descobriu – o Código da Vinci”.


- Você leu o original, o da polêmica?
- Não. Achei que, como esse promete explicar tudo, fosse mais fácil entender toda a confusão.
- Ah.


“Isso que dá tentar puxar assunto.”

Merival apurou, e descobriu que Jorge balançava entre o CD duplo especial do Chico Buarque e o livro “Machado de Assis - um gênio brasileiro”, biografia do bruxo do Cosme Velho escrita por Daniel Piza.

“Que gosto, que refinamento!”

Érica passou a olhar Jorge com outros olhos. E tanto olhou, que ele a percebeu, e passaram a se cumprimentar com mais freqüência. Jorge, sempre que a via, sorria. Já Érica, interessada, passou a gastar mais tempo decidindo qual roupa usar no trabalho. As pessoas reparavam, comentavam, e Érica exultava.

E como sabia das preferências de Jorge, não pensou duas vezes: comprou o CD do Chico E a biografia do Machado. Fez um embrulho caprichado, e esperou.

Passaram-se os dias, chegando enfim o do evento tão aguardado.


17 horas. Embrulhos nas sacolas, ao lado das mesas, todos alvoroçados, ansiosos.

Expediente acabando, a 1 hora mais comprida da vida de Érica. Imaginava o instante em que seria chamada, receberia seu presente (“Meu Deus, o que foi que eu pedi mesmo?”). Tentaria manter a calma e diria alguma coisa engraçada para descrever Jorge, que faria cara de assustado, levantaria e iria ao seu encontro. Um abraço, talvez um beijo. Dois. Todos olhando, alguns se dando conta que eles faziam um casal tão bonito...

Merival passou com um aceno e um sorriso, mas Érica nem viu. Viu sim, mas estava prestando atenção no fundo do andar, a sala do refeitório.

“Mas, e se Jorge me pegou? Seria o desfecho perfeito, a deixa para um convite até sua casa, ouvir o Chico, quem sabe lermos juntos alguns trechos da biografia...”.

Hora da festinha.

Alguns colegas beberam escondidos e se encontravam um tanto altos, esquentando a reunião. Zulmira, dos Recursos Humanos, pede silêncio e o primeiro voluntário, o amigo ou amiga que abrisse a rodada. Ninguém se prontifica, só trocam olhares e risinhos abafados. Érica ferve, não cabendo em si de ansiedade e, num pulo, levanta e se anuncia. No mesmo momento o arrependimento bateu, mas era tarde. Respirou fundo, firmou as pernas, e começou.

Recordando esse dia, Érica não faz idéia do que e por quanto tempo falou. Jorge levantou, tomou o presente, lhe deu um aperto de mão e partiu para enunciar seu sorteado. A desilusão de Érica foi tamanha, que se sentiu encolhendo e sumindo de frustração. Sentou no seu canto, amargurando aguardar sua vez antes de desaparecer.

Ainda teve que ver Jorge colado ao pescoço de Janete. Merival comentou o que Érica lhe contara, e Jorge resolveu investir na secretária. Com sucesso, para desespero de Érica, que inventara a história toda.

Os amigos foram aclarados, um a um. Chegara para a Érica a hora de descobrir quem ficara com a enfadonha tarefa de presenteá-la. Um envergonhado Merival se anuncia, tendo que ir até a cadeira de Érica lhe entregar os presentes, já que ela, com medo de cair ao levantar, continuou sentada.

Merival chamou algumas pessoas que aguardavam em outra sala, estranhas figuras em roupas antigas. Como Érica esquecera de informar o que queria ganhar, e Merival sabia que ela havia ficado feliz com as escolhas de Jorge, resolvera contratar um grupo de seresteiros e dedicar-lhe uma música. Do Chico, com açúcar, com afeto.

Érica então reparou que Merival não era assim, tão baixinho, tinha um brilho vivo nos olhos, e a careca lhe conferia um charme peculiar.

Depois daquele ano, Érica largou o emprego no escritório. Queria se dedicar em ser a dona-de-casa perfeita, a mãe devotada, ela que um dia sonhava apenas em ter alguém ao seu lado, e ganhou um amigo, um amor, e até um cachorro. Só precisava melhorar em Merival seu estranho gosto literário.

DO FIM ATÉ O COMEÇO

horácio podia ter muitos defeitos, mas nem sempre fora um rapaz acomodado, sem ambição. Sonhara estudar Biologia, mas as escolhas que precisou fazer na vida o tornaram motorista de ônibus.

Todos os dias o mesmo trajeto, repetidas vezes, sobe gente, desce gente, “ô menino, pode pular a catraca não”, salário miserável no fim do mês, todo dia mais do mesmo. horácio se sentia sozinho, perdido, e já não sonhava mais em estudar: queria era moça boa para casar e ter filhos, muitos deles.

Mas seu trabalho não facilitava o contato com mulheres, as várias que iam e vinham em seu ônibus, algumas por todos os dias. A plaquinha de “Proibido falar com o motorista” lembrava a importância de manter sua atenção no trânsito, e o máximo que podia fazer era responder aos cumprimentos, devolver o troco, desejar bom-dia.

Fazia ponto final em uma grande praça, ao lado de uma barraquinha com doces. Nela inara, uma senhora queimada pelo sol e cara de poucos amigos batalhava o sustento da família. horácio aproveitava o entra e sai de pessoas e trocava dinheiro, jogava algumas palavras fora e comprava chicletes de hortelã – para manter o hálito fresco.

Chegava em casa cansado, e sonhava; algumas vezes tinha pesadelos, quando corria perseguido por um ônibus, e por mais que dobrasse diferentes esquinas, dava sempre na mesma rua. Acordava assustado, encharcado, procurando se convencer de que, ao menos, tinha sorte em garantir o dinheiro para o aluguel e o plano de saúde de dona vânia, sua mãe.


Domingo, dia de folga, horácio resolve dar um passeio pela cidade. Com seu percurso já registrado pelo cérebro nem percebera que, mesmo caminhando, repetia o trajeto de seu ônibus. Já que estava por ali, passaria na banca de inara para um “oi” e alguns chicletes.

inara não estava lá. Em seu lugar na barraquinha de doces, uma moça jovem, nem bonita de todo, muito menos feia, sentada torta no alto banco, escondendo-se atrás de um catálogo da Avon.

horácio infla o peito, ajeita a postura, e puxa conversa enquanto escolhe algumas balas. Três pacotes de doces e um refrigerante depois, horácio saboreava o nome recém-conhecido: Madalena. Leninha, para a mãe inara e os irmãos celso e edivan, Lena para os amigos. horácio poderia se considerar um? Sim, e assim fez.

Lena enrolava um cacho de cabelo com o dedo quando lhe perguntou o que fazia. horácio hesitou, mas respondeu, e foi se empolgando quando a pequena revelou querer muito aprender a dirigir e que achava muito bonito ser motorista de ônibus, tão útil para tantas pessoas.

Abobalhado, Horácio flutuava no caminho para casa. Dormiu um sono sem sonhos, tranqüilo. Acordou feliz. Não lhe atingiam mais a falta de educação das pessoas, o salário minguado, o caminho diário já tão conhecido. Só lhe importava imaginar que a vida lhe apontava um novo sentido, tendo nos braços de Madalena seu porto seguro, o ponto final. E o começo de tudo.

ENCONTROS E DESENCONTROS

Após dezenove anos, três filhos e todos os malabarismos para pagar hipoteca, planos de saúde, supermercado e a escola das crianças, Erasmo e Maria Clara mal conversavam. Mais do que a falta de tempo, perderam o hábito. Cansados, ao fim da noite não tinham ânimo nem para o sexo, quanto mais para discutir a relação ou mesmo os acontecimentos do dia.

A rotina era puxada: acordando pelas seis, Erasmo banhava os filhos sonolentos enquanto Maria Clara preparava a refeição matinal. Após a van do colégio partir, uma folheada no jornal, um gole no café, um olho no relógio. Com o lixo posto para fora, seguem para o metrô em silêncio, preocupados com atribulações, colegas, chefes e documentos. Algumas perguntas com respostas já conhecidas, onde completam o raciocínio do outro sem dúvidas ou protestos, porque o tempo, esse não pára.

Mas hoje não vivem tão mal quanto ao início do casamento, de favor com amigos e Maria Clara enjoando pela gravidez não desejada, mas bem-vinda. O primeiro filho os unira ao dividirem risos, caras de bobo, orgulho rasgado. Dividiram também a necessidade de um lar só deles, remédio, médicos, leite, fraldas e noites em claro.

E assim, sempre correndo para não faltar com os seus, seguiram a vida. Sentiam-se bem, ou pelo menos, não pensavam no assunto. O tempo lhes trouxera alegrias, tristezas, dívidas, promoções, mas uma hora a vida cobra todas as decisões tomadas, as escolhas adiadas.

Já na estação do metrô, espremidos no mar de gente, aguardam a chegada do próximo trem. Maria Clara lia o jornal que recebera logo cedo, Erasmo as propagandas espalhadas, inquieto. Passara os últimos dias tentando se lembrar de como era sua vida com Maria Clara, sua Mariquita, lá atrás, no começo, antes dos filhos, família, compromissos. Mal conseguia recordar. Puxava pela memória, confuso em meio às tantas pessoas que iam e vinham. E então lembrou do dia em que conhecera Maria Clara, sábado de carnaval, atrás do Bloco do Eustáquio. Perdida de sua amiga colombina, Maria Clara era uma cigana ao sabor de sua sorte, que encontrara conforto nos olhos plácidos de Erasmo.

Com um meio sorriso nos lábios, Erasmo observa Maria Clara, absorta em sua leitura. Erasmo lhe perguntou coisas simples, ao que ela resmungou respostas:

- Você passa no colégio pra pegar o Rodrigo? Eu pego o Marcelo no inglês.
- Almoça comigo hoje?
-Tá bom.
- Sei lá, podíamos sair mais tarde, talvez um cinema, que acha?
- Tá.
- Seu cabelo tá pegando fogo, Maria Clara.
- É sim. – o celular dela toca – Alô? Não, já tô chegando. Já tá no escritório? Não tô te ouvindo direito, até daqui a pouco. – O que você tava dizendo mesmo, Erasmo?
- Nada.

Mais outro trem chegou e saiu cheio, e a multidão não diminuía. Empurrados e apertados, Erasmo e Maria Clara se perdem um do outro. Maria Clara, em sua ginástica de ler o jornal e segurar a bolsa rente ao corpo, nem percebera. Ao virar para o lado e comentar uma nota lida, não encontrou Erasmo. Pôs-se na ponta dos pés, alarmada. Procurou manter a calma. Nada do marido. Mas o que mais lhe incomodava era a estranha sensação de solidão que lhe invadiu ao se ver sem Erasmo. Respirou fundo, e entrou no próximo trem. Ele se viraria bem sozinho.

Ao sair da estação, caminhando por ruas já tão conhecidas, o celular de Maria Clara toca:
- Alô?
-“E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar, amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele,
também que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito*.”

E assim estavam, Maria Clara e Erasmo, parados, estancados frente a frente, ainda com os celulares ligados, dezenove anos, três filhos, o primeiro e único amor, de sempre e para sempre. E abriram um sorriso que iluminaria uma cidade inteira.


*TOADA DO AMOR, Carlos Drummond de Andrade

O BILHETE

Dora cantava enquanto cozinhava o feijão na panela de pressão. Naquela semana tentava novamente a sorte na loteria, apostando agora nos números que mais gostava: 7, de filhos que sua mãe teve; 12, a idade do primeiro beijo; 16, o dia em que nasceu; 25, o número da casa dos pais; 33, a idade de Jesus; e 46, ano em que o pai nasceu. Tem a certeza e a fé em Nossa Senhora do Carmo de que os seus números serão sorteados, então ficará rica e realizará seu grande sonho: casar.

Está quase na hora do sorteio, e Dora não cabe em si de ansiedade. O rádio ligado na cozinha desde cedo para não perder nenhum detalhe, com o volume baixinho para não incomodar os patrões. Imagina como seria sua vida e de sua família com o dinheiro do prêmio, enquanto transforma uma calça de seu Afrânio em bermuda para Paulo, o filho gatinho da família Toledo de Albuquerque.


O locutor anuncia e ela, tremendo, confere. Bingo! Ela é a ganhadora. E ganhou sozinha!

Dora começa a gritar e atrai a atenção de Dona Lúcia, Seu Afrânio e Paulo que, completamente pendurados com dívidas e vivendo somente de pose e vento, pensam na melhor forma de se aproveitar da situação: casar Paulo com Dora e passar a mão na grana.

A notícia se espalha rapidamente por todas as empregadas e patroas do condomínio. Pedidos de empréstimo, gastos e lembrancinhas começam a surgir, além da súbita e evidente inveja pela probabilidade do matrimônio.

Dora pensa na possibilidade de casamento com o filho dos patrões, mas não esquece de sua antiga atração por Aguinaldo, o prestativo bicheiro, charmoso e canastrão, que a abraça firme enquanto dançam no salão ao som do forró.

Antes de Aguinaldo, Dora fora apaixonada por Emiliano. De tanto esperar o namorado se pronunciar, pedi-la em casamento e formarem uma família feliz, se inscreveu em um programa de auditório, sem que Emiliano soubesse o motivo da ida dos dois ao estúdio. Um robusto apresentador o encosta na parede e o torna vergonha em cadeia nacional por enrolar moça honesta, prometer mundos e fundos, se aproveitar da garota e não assumir o compromisso. Diante da derradeira pergunta, Emiliano diz aceitar sim se casar com Dora, mas assim que sai do estúdio, a abandona. Dora volta para casa chorando, de carona no caminhão baú com os móveis e eletrodomésticos doados em nome do programa, para um casamento que não iria ocorrer.

Dona Lúcia, peruíssima assumida e endividada, se afunda ainda mais nos cartões de crédito, procurando tornar a futura nora mais apresentável para a sua roda de amigas emergentes. Hoje em dia é “out” ser pertencente às famílias quatrocentonas, herdeiras por décadas de uma fortuna que começou sabe-se lá como. O “in” atualmente é ganhar prêmios instantâneos, enriquecer com raspadinhas, jogo do bicho. Atualizem-se, amigas. Novos ricos ganham programas de televisão, espaços nas colunas sociais, festas badaladas, tudo sem esforço. Isso sim é vida boa.

Paulo se mostra cada dia mais carinhoso com Dora. Antes a esnobava, era verdade, mas com a intenção de esconder seus verdadeiros sentimentos. Achava que nunca uma mulher como ela iria olhar para alguém como ele, que mesmo forte e sarado, não era reconhecido como exemplo de generosidade e inteligência. Boba Dora não era, mas fingiu que acreditou.

Dora fica conhecida por todos e passa a receber os melhores tratamentos. Seus pais viram visitas importantes na casa dos antigos patrões, agora sua futura família. Nada mais de lavar, passar, cozinhar. Aprendeu a se vestir, a comer à mesa com todos, tudo ao mesmo tempo agora, e olha que ela ainda nem reclamou o prêmio.

O prêmio. Estava na hora de ir buscá-lo. O futuro marido se oferece para ir junto, garantir sua segurança (do dinheiro, é claro). O patrão oferta o carro, e ele como motorista, por comodidade e praticidade. Dona Lúcia se dispõe a acompanhá-la ao banco, para orientar sobre as melhores aplicações e rendimentos.

Dora não consegue nem mais respirar sozinha. Não lhe deixam para nada, vive sob vigilância, cobranças, pedidos. Sente falta de sua antiga vida, de seu trabalho, das noites no forró, de Aguinaldo.

Aguinaldo. O único que não a cobrou, apertou, pediu. A camisa aberta três botões, a corrente fina de ouro, o braço apertando sua cintura como lata de cerveja.

Na calada da noite Dora escapa, procurando sua antiga liberdade, sua paz, o cheiro do sabonete de Aguinaldo. Leva consigo os presentes, sapatos, roupas, jóias, deixando somente o bilhete. Quem o achasse, poderia fazer o que bem entendesse.

Os Toledo de Albuquerque não tiveram tempo de praguejar a fuga de Dora, ao se depararem com o desejado pedaço de papel. Voando, apresentaram-se como os felizes ganhadores do prêmio acumulado e cobiçadíssimo. Àquela altura, Dora e Aguinaldo já estavam longe, e não puderam ver a cara de decepção e raiva dos patrões ao descobrirem que um dos números não batia.

O primeiro beijo de Dora fora aos 11, não aos 12. Uma pequena confusão.

ANDAR COM FÉ EU VOU

Otacílio dizia-se “sem sorte”. Sim, sem sorte, pois todos sabem que dizer-se azarado, dá azar.

Não passava debaixo de escada, corria de gato preto, não mantinha espelhos com medo de quebrá-los e ganhar, assim, sete anos de... você sabe.

Evitava o número 13, levantar com pé esquerdo e praga de mãe, mesmo quando a mãe era a dos outros.

Usava, espalhados pelo corpo, figa, patuá, medalhinha do Anjo da Guarda, retratinho de Nossa Senhora, fitinha do Senhor do Bonfim, trevo de quatro folhas, ramo de arruda e pé de coelho. Esse último, desistiu de carregar. Se desse mesmo certo, teria salvado o pobre do coelho que nascera com quatro.

Mas nada adiantava, a maré não virava a seu favor. Perdera o emprego e, junto com o fim do dinheiro, a esposa e os dois filhos. Ameaçava ser preso por não ter como pagar a pensão alimentícia e nem a pensão da Dona Cota, onde vivia e mal pagava com os bicos que fazia.

Os amigos e parentes se afastaram. Quem queria ao lado um imã ambulante de má sorte?

Quando Otacílio conseguia agendar uma entrevista de emprego, acordava atrasado, tinha o salto do sapato quebrado e o ônibus rebocado. Conseguia convencer uma garota a um encontro? A calça rasgava e a única camisa em bom estado ganhava um banho de espaguete.

Ele bem que se esforçava, coitado. Ano Novo era o primeiro a pular as 7 ondas, pedindo forças aos santos e orixás, sem distinção - toda ajuda é bem-vinda para quem está na mão. Corria para casa, subindo a escada comendo uva e romã, tomando cuidado para não derrubar o vinho tinto com 3 grãos de arroz na camisa branca nova, comprada em prestações.

E tudo continuava na mesma, até a virada do último ano. Chateado, resolveu jogar fora todos os seus amuletos. Sentiu-se bem, mais leve uns 2 quilos pelo menos. De camiseta vermelha desbotada, bermudão e chinelo de dedo, acompanhou os fogos pela TV, para espanto dos outros moradores.

Otacílio seguiu assim a vida. Meses depois o encontrei num shopping center, fazendo compras ao lado de uma bela morena. Admirado com a mudança, quis saber das boas novas, que não eram só boas, eram ótimas: Otacílio recebera de herança uma gorda quantia, deixada por uma tia avó que vivia distante, chegada à sua falecida mãe. No aeroporto, indo para a pequena cidade de sua afastada parenta, reencontrou Irene, namorada dos tempos de colégio, recém-divorciada e bem de vida.

Um amor antigo, uma herança ligada ao passado. O atual racional Otacílio não acredita mais em amuletos e superstições, preferindo levar a vida de uma forma mais tranqüila. Mas toda virada de ano passa de bermudão, chinelo de dedo e a velha e desbotada camiseta vermelha.

Só por garantia.

“ALGUÉM SABE DA MARTA?”

- Ô Dona Marta, ainda num é hora de jogar o lixo não.
- Quebra esse galho, Seu Lázaro, tô super atrasada hoje. Tchau!
- Tchau, Dona Marta. Hoje. Toda semana, a mesma história...


Marta não tinha a mínima vocação para os afazeres domésticos. Sua residência, lar, cafofo ou qualquer outro nome que queira dar, se assemelhava a passagem do furacão Katrina: roupas pelo chão, sapatos mal estacionados debaixo do sofá, calcinhas penduradas em todos os cantos do banheiro, e restos de comida ao lado dos eletrônicos - quando não dentro. Uma desordem total.

Faxina pesada ou mesmo uma limpeza superficial, só em dias de visita, quando os armários eram entupidos com cacarecos e uma selva de trastes velhos se escondia debaixo da cama. Tirado o entulho do meio da passagem, as janelas encardidas eram abertas enquanto ardiam um ou dois incensos, para disfarçar o odor.

Trocar roupa de cama ou arrumar os lençóis? Para Marta, filosofia de vida era: “Se vou usar de novo, prá que pôr no lugar?”.

Por várias vezes trocou de companheira de quarto – mas nenhuma teve estômago suficiente; perto de Marta, todas pareciam Amélia, aquela que era mulher de verdade. Apertada para pagar o aluguel, vivia pendurada, mas não gostava de guardar dinheiro ou economizar, e dizia: “Não deixe para gastar amanhã o dinheiro que pode gastar hoje”.

Ela também gostava de frases de efeito.

Sua desorganização atingia também outras áreas de sua vida: vivia chegando atrasada ao trabalho, pois sempre perdia a hora e tempo correndo para mar banho, encontrar uma roupa razoavelmente limpa e sair. Sempre tinha um colega a perguntar: “Alguém sabe da Marta?”.

Ela aproveitava para colocar a culpa em tudo: no relógio, no trânsito, na chuva, no síndico, no elevador ou mesmo na mãe.

Por telefone, Dona Lúcia só podia enviar recomendações, “ande na linha, se esforce no emprego, guarde dinheiro, tome remédio, arrume um namorado”, e outras tantas rogativas que Marta já se acostumara a nem mais ouvir. Pelo menos a súplica para o namorado ela resolvera atender: conheceu Otávio, arquiteto bonito, inteligente e rico. A resposta para seus problemas, trazendo consigo interessantes acessórios opcionais: dinheiro para gastar, casa de praia e empregados, vários deles.

Um dia, em casa após o expediente, Otávio telefona convidando Marta para jantar, mas que se apressasse, pois chegaria ao apartamento da amada em 45 minutos.

45 minutos.

Tempo regular para quem mantivesse as coisas razoavelmente no lugar, incluindo roupas, sapatos, maquiagem... e toda a casa.

Ferrou”.

Correndo contra o relógio, Marta executou uma limpeza que chamava de “disfarçando as evidências”: da geladeira, tudo o que estava verde ou que um dia havia sido verde, direto para o lixo, sem perdão. Meias, calcinhas, sutiãs e lenços servindo como enchimentos para as já robustas almofadas. E todos os trecos e cacarecos ainda largados para o já atulhado quarto de empregada.

Pronto. Agora um banho a jato (“Ainda bem que depilei as pernas ontem!”), um vestido preto (“Só precisa esfregar essa manchinha na barra. Ué, tá ficando maior”), uma sandália baixinha (“Eu comprei mesmo um pé preto e outro azul marinho?”). Uma escovada básica nos dentes e outra nos cabelos, prá dar brilho.

Escova. (“Secador. Onde guardei o secador? Última vez que o vi... na sala? Não. Área de serviço? Também não. Dentro da bolsa de praia! Mas e a bolsa? Quarto de empregada!”).

15 minutos.

Marta encarou as pilhas de bagunças do quarto de empregada como um jogo de pega-varetas: se tirasse a peça errada, a estrutura despencaria. E aquela obra de arte havia levado tempo para ser erguida, e ainda tinha história! Ali poderia ser encontrado, talvez, o seu primeiro videocassete, ainda com a fita do “Dirty Dancing” presa dentro, que fingia assistir enquanto tirava a calça do... do... como era o nome dele mesmo?

Tinha que considerar a situação, mas rápido: Otávio valia o esforço de recuperar o secador perdido? Beleza. Dinheiro. Empregada. Empregada... Tudo bem. Respirou fundo, e se lançou na empreitada.

Marta começou a remontar a pilha. Uma coleção de clássicos nunca lidos prá lá, revistas de fofoca prá cá, meia garrafa de vinho. E nada do secador.

Mas foi de tanto procurar, que achou. Achou toda a pilha em cima de sua cabeça. Com o deslocamento das bugigangas, Marta se viu trancada, de porta batida.

Calma, garota. Raciocina. Com secador ou sem você terá que sair desse quartinho. Otávio não vai deixar de te amar pelos seus cabelos crespos e sem brilho. (...) Ou vai?

Campainha. Otávio! A salvação.

Marta gritou, chamou por Otávio, que nada ouviu. Esperneou, descabelou, e nada. Quanto mais se debatia, mais afundava na bagunça e se aproximava da parede oposta à porta. Otávio, indignado com a desfeita da namorada, vai embora.

O coração nervoso reclamou, mas Marta preferiu nem lembrar que o remédio para sua dor ficara do lado de fora, no banheiro. Ou na bolsa. Na cozinha. Em algum lugar.


Marta nunca mais foi vista.

Tempos depois Otávio casou com uma atriz, dessas de revista de fofocas, que vinha com suas próprias empregadas.


O proprietário do apartamento de Marta e síndico do prédio, Seu Lázaro, é que não sabia mais o que fazer. Sem receber os aluguéis atrasados, tentou contato por telefone, celular, e-mails e cartas. Nada, nem mesmo com a mãe de Marta, coitada, que além da hérnia guardava um coração fraco pra receber susto.

Com sua cópia da chave, o senhorio entrou no apartamento.


Seu Lázaro ora pensava em Marta com tristeza, provavelmente seqüestrada e mantida refém em algum cativeiro. Ora pensava em Marta com raiva, provavelmente em outra cidade dando calote noutro locador.

Precisava do dinheiro do aluguel, mas o que fazer com toda aquela bagunça? Bagunça que, por sinal, fedia mais a cada dia.

E no escritório de Marta, volta e meia um colega ainda perguntava:
- Alguém sabe da Marta?