O BILHETE

Dora cantava enquanto cozinhava o feijão na panela de pressão. Naquela semana tentava novamente a sorte na loteria, apostando agora nos números que mais gostava: 7, de filhos que sua mãe teve; 12, a idade do primeiro beijo; 16, o dia em que nasceu; 25, o número da casa dos pais; 33, a idade de Jesus; e 46, ano em que o pai nasceu. Tem a certeza e a fé em Nossa Senhora do Carmo de que os seus números serão sorteados, então ficará rica e realizará seu grande sonho: casar.

Está quase na hora do sorteio, e Dora não cabe em si de ansiedade. O rádio ligado na cozinha desde cedo para não perder nenhum detalhe, com o volume baixinho para não incomodar os patrões. Imagina como seria sua vida e de sua família com o dinheiro do prêmio, enquanto transforma uma calça de seu Afrânio em bermuda para Paulo, o filho gatinho da família Toledo de Albuquerque.


O locutor anuncia e ela, tremendo, confere. Bingo! Ela é a ganhadora. E ganhou sozinha!

Dora começa a gritar e atrai a atenção de Dona Lúcia, Seu Afrânio e Paulo que, completamente pendurados com dívidas e vivendo somente de pose e vento, pensam na melhor forma de se aproveitar da situação: casar Paulo com Dora e passar a mão na grana.

A notícia se espalha rapidamente por todas as empregadas e patroas do condomínio. Pedidos de empréstimo, gastos e lembrancinhas começam a surgir, além da súbita e evidente inveja pela probabilidade do matrimônio.

Dora pensa na possibilidade de casamento com o filho dos patrões, mas não esquece de sua antiga atração por Aguinaldo, o prestativo bicheiro, charmoso e canastrão, que a abraça firme enquanto dançam no salão ao som do forró.

Antes de Aguinaldo, Dora fora apaixonada por Emiliano. De tanto esperar o namorado se pronunciar, pedi-la em casamento e formarem uma família feliz, se inscreveu em um programa de auditório, sem que Emiliano soubesse o motivo da ida dos dois ao estúdio. Um robusto apresentador o encosta na parede e o torna vergonha em cadeia nacional por enrolar moça honesta, prometer mundos e fundos, se aproveitar da garota e não assumir o compromisso. Diante da derradeira pergunta, Emiliano diz aceitar sim se casar com Dora, mas assim que sai do estúdio, a abandona. Dora volta para casa chorando, de carona no caminhão baú com os móveis e eletrodomésticos doados em nome do programa, para um casamento que não iria ocorrer.

Dona Lúcia, peruíssima assumida e endividada, se afunda ainda mais nos cartões de crédito, procurando tornar a futura nora mais apresentável para a sua roda de amigas emergentes. Hoje em dia é “out” ser pertencente às famílias quatrocentonas, herdeiras por décadas de uma fortuna que começou sabe-se lá como. O “in” atualmente é ganhar prêmios instantâneos, enriquecer com raspadinhas, jogo do bicho. Atualizem-se, amigas. Novos ricos ganham programas de televisão, espaços nas colunas sociais, festas badaladas, tudo sem esforço. Isso sim é vida boa.

Paulo se mostra cada dia mais carinhoso com Dora. Antes a esnobava, era verdade, mas com a intenção de esconder seus verdadeiros sentimentos. Achava que nunca uma mulher como ela iria olhar para alguém como ele, que mesmo forte e sarado, não era reconhecido como exemplo de generosidade e inteligência. Boba Dora não era, mas fingiu que acreditou.

Dora fica conhecida por todos e passa a receber os melhores tratamentos. Seus pais viram visitas importantes na casa dos antigos patrões, agora sua futura família. Nada mais de lavar, passar, cozinhar. Aprendeu a se vestir, a comer à mesa com todos, tudo ao mesmo tempo agora, e olha que ela ainda nem reclamou o prêmio.

O prêmio. Estava na hora de ir buscá-lo. O futuro marido se oferece para ir junto, garantir sua segurança (do dinheiro, é claro). O patrão oferta o carro, e ele como motorista, por comodidade e praticidade. Dona Lúcia se dispõe a acompanhá-la ao banco, para orientar sobre as melhores aplicações e rendimentos.

Dora não consegue nem mais respirar sozinha. Não lhe deixam para nada, vive sob vigilância, cobranças, pedidos. Sente falta de sua antiga vida, de seu trabalho, das noites no forró, de Aguinaldo.

Aguinaldo. O único que não a cobrou, apertou, pediu. A camisa aberta três botões, a corrente fina de ouro, o braço apertando sua cintura como lata de cerveja.

Na calada da noite Dora escapa, procurando sua antiga liberdade, sua paz, o cheiro do sabonete de Aguinaldo. Leva consigo os presentes, sapatos, roupas, jóias, deixando somente o bilhete. Quem o achasse, poderia fazer o que bem entendesse.

Os Toledo de Albuquerque não tiveram tempo de praguejar a fuga de Dora, ao se depararem com o desejado pedaço de papel. Voando, apresentaram-se como os felizes ganhadores do prêmio acumulado e cobiçadíssimo. Àquela altura, Dora e Aguinaldo já estavam longe, e não puderam ver a cara de decepção e raiva dos patrões ao descobrirem que um dos números não batia.

O primeiro beijo de Dora fora aos 11, não aos 12. Uma pequena confusão.