ANDAR COM FÉ EU VOU

Otacílio dizia-se “sem sorte”. Sim, sem sorte, pois todos sabem que dizer-se azarado, dá azar.

Não passava debaixo de escada, corria de gato preto, não mantinha espelhos com medo de quebrá-los e ganhar, assim, sete anos de... você sabe.

Evitava o número 13, levantar com pé esquerdo e praga de mãe, mesmo quando a mãe era a dos outros.

Usava, espalhados pelo corpo, figa, patuá, medalhinha do Anjo da Guarda, retratinho de Nossa Senhora, fitinha do Senhor do Bonfim, trevo de quatro folhas, ramo de arruda e pé de coelho. Esse último, desistiu de carregar. Se desse mesmo certo, teria salvado o pobre do coelho que nascera com quatro.

Mas nada adiantava, a maré não virava a seu favor. Perdera o emprego e, junto com o fim do dinheiro, a esposa e os dois filhos. Ameaçava ser preso por não ter como pagar a pensão alimentícia e nem a pensão da Dona Cota, onde vivia e mal pagava com os bicos que fazia.

Os amigos e parentes se afastaram. Quem queria ao lado um imã ambulante de má sorte?

Quando Otacílio conseguia agendar uma entrevista de emprego, acordava atrasado, tinha o salto do sapato quebrado e o ônibus rebocado. Conseguia convencer uma garota a um encontro? A calça rasgava e a única camisa em bom estado ganhava um banho de espaguete.

Ele bem que se esforçava, coitado. Ano Novo era o primeiro a pular as 7 ondas, pedindo forças aos santos e orixás, sem distinção - toda ajuda é bem-vinda para quem está na mão. Corria para casa, subindo a escada comendo uva e romã, tomando cuidado para não derrubar o vinho tinto com 3 grãos de arroz na camisa branca nova, comprada em prestações.

E tudo continuava na mesma, até a virada do último ano. Chateado, resolveu jogar fora todos os seus amuletos. Sentiu-se bem, mais leve uns 2 quilos pelo menos. De camiseta vermelha desbotada, bermudão e chinelo de dedo, acompanhou os fogos pela TV, para espanto dos outros moradores.

Otacílio seguiu assim a vida. Meses depois o encontrei num shopping center, fazendo compras ao lado de uma bela morena. Admirado com a mudança, quis saber das boas novas, que não eram só boas, eram ótimas: Otacílio recebera de herança uma gorda quantia, deixada por uma tia avó que vivia distante, chegada à sua falecida mãe. No aeroporto, indo para a pequena cidade de sua afastada parenta, reencontrou Irene, namorada dos tempos de colégio, recém-divorciada e bem de vida.

Um amor antigo, uma herança ligada ao passado. O atual racional Otacílio não acredita mais em amuletos e superstições, preferindo levar a vida de uma forma mais tranqüila. Mas toda virada de ano passa de bermudão, chinelo de dedo e a velha e desbotada camiseta vermelha.

Só por garantia.