A moça que escreve como quem filma

O que acontece quando alguém com olhar de cinéfilo lança a visão sobre os dramas do cotidiano e decide escrever sobre eles? Há muitas respostas possíveis, mas me interessa falar de Aleksandra Pereira, que desponta como uma contista que tanto sabe projetar com nitidez as histórias e personagens que cria, quanto surpreender com tramas que partem de situações e pessoas comuns justamente para daí revelar a originalidade de cada instante da vida, por mais trivial que esta possa parecer a um primeiro olhar.

Não há personagens secundários nos contos de Aleksandra. Até aquele que passa, diz uma frase e vai embora, mesmo esse emerge com alma, histórias e carisma, alguém que nos chama atenção e o interesse e sobre quem também haveria muito o que se contar, como a Inara, a vendedora de doces de “Do fim até o começo”.

Hábil no trato com as imagens, a autora necessita de pouquíssimas referências para delinear a personalidade daquelas criaturas que cria e que serão lançadas em conflitos inesperados e nunca inverossímeis. Cada frase vem como se fosse mais um detalhe essencial aprofundando a narrativa que se foca, os atores da trama, suas vidas, passado, desejos, personalidade, seus conflitos cotidianos. É assim que essa escritora extrai o inusitado daquilo que é notoriamente comum, como se vê em personagens como Otacílio (“Andar com fé eu vou”), que quanto mais busca proteção em amuletos e outras defesas esotéricas, mais parece atrair aquilo que teme; ou então a desventurada e solitária Marta (“Alguém sabe da Marta?”), avessa a qualquer tipo de organização doméstica, que acaba ironicamente vítima de sua própria bagunça, depois de uma plausível sequência de pequenos e tragicômicos acontecimentos. E que não se imagine que Aleksandra seja impiedosa com os seres que cria. Ao contrário, ela mais parece seguir a lição pirandelliana da relação do autor com seus personagens, seguindo-os amorosa e respeitosamente naquilo que “eles lhe propõem”, à medida em que a lógica daquelas criaturas vai ficando mais clara ao longo da ação delas nas tramas.

Nos contos dessa autora, tudo está sempre em nítido processo de mutação; as tramas parecem flagrar os personagens exatamente nesses instantes em que suas vidas mudarão significativamente, seja por força de um bilhete premiado, como acontece com Dora em “O bilhete”, ou um simples telefonema que traz à tona um amor sufocado pelo dia-a-dia em “Encontros e desencontros”. Por isso, é até possível que, mais do que o cotidiano, seja a implacável mutabilidade da existência o foco maior da obra de Aleksandra. E aqui me refiro ao modo como a vida se move e – ainda que não nos demos conta disso – pressiona tudo e todos de modo a fazer com que cada dia seja, no mínimo, extraordinário, dentro de seu contexto particular.

Aleksandra tem olhos de cinéfila e, ouso também dizer, de uma cineasta que faz filmes escrevendo. Ler seus contos evoca, de certo modo, a experiência de assistir um filme, pois aqui é impossível não ter a sensação de ver saltar com clareza na tela da nossa mente pequenos fragmentos de existência, cenas que nos convocam a imergir na vida de outrem, de partilhar sentimentos, alegrias e desconfortos. E daí, ao final da história, se deixar quedar em desnorteio ou simplesmente perceber que crescemos mais um pouco naquilo que habita em nós e que alguns gostam de chamar de espírito.


Luiz Felipe Botelho
Salvador, 10 de janeiro de 2007


Lipe, um abraço bem grande e apertado,
e um Kit Palavras com tudo de bom dentro.